Autofagia para a sobrevivência
Somos todos autofágicos – e isso é bom. A todo momento nossas células
se digerem e se renovam, desfazendo e reaproveitando proteínas, por
meio de um mecanismo biológico chamado autofagia. Vista antes apenas
como um processo de morte celular, essa forma de autodestruição
seletiva de componentes celulares mostra-se agora como um artifício de
sobrevivência dos organismos – só quando não há mais conserto possível é
que as células se apagam. Como aparentemente pode ser acelerada ou
retardada, a autofagia tornou-se uma estratégia nova para combater
doenças e prolongar a vida das células, cujo interior deve guardar
tanto movimento quanto os quadros do artista plástico Jackson Pollock.
De imediato, a autofagia está abrindo perspectivas de aplicações
novas para velhos medicamentos. Por exemplo, o lítio, usado para tratar
pessoas com transtorno bipolar de humor, marcado por saltos repentinos
da euforia à depressão profunda, pode ser útil para deter o mal de
Alzheimer, uma forma de degeneração dos neurônios que tende a se agravar
com o envelhecimento. A cloroquina, além de aplacar a malária, pode
ajudar a combater tumores. A rapamicina, antibiótico usado para evitar a
rejeição de órgãos transplantados, prolongou a longevidade de um grupo
de camundongos, em comparação com outro grupo, que seguiu o curso
normal do envelhecimento.
“Estabelecer a segurança de usos e acertar as dosagens de novas
aplicações de medicamentos já aprovados é bem mais fácil do que começar
tudo do zero”, argumenta Soraya Soubhi Smaili, professora da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), à frente de um dos poucos
grupos de pesquisa nessa área no país. Cláudia Bincoletto, também
professora da Unifesp e pesquisadora da equipe de Soraya, mostrando por
que essa estratégia de busca de novos remédios poderia ser conveniente
para países de recursos financeiros limitados como o Brasil,
acrescenta: “Drogas novas são muito mais caras que as mais antigas”.
Também há espaço para a pesquisa de remédios novos. Na Unifesp,
Cláudia estuda os efeitos promissores de compostos derivados do
elemento químico paládio sobre a autofagia como forma de combater
tumores. Ela tem verificado que a possibilidade de regular a autofagia
por meio de compostos químicos pode ser um caminho para aumentar a
eficiência de compostos antitumorais, diminuindo a dosagem e os efeitos
indesejados sobre outras células.
Em um estudo recém-concluído na Universidade de São Paulo (USP),
Renato Massaro, orientado por Silvya Maria-Engler, testou um composto
extraído de raízes e folhas de um arbusto da Mata Atlântica, a
pariparoba, contra uma linhagem de células humanas de tumor de cérebro
que cresciam em um meio de cultura apropriado, mantido em laboratório.
Os resultados que ele colheu indicaram que esse composto, o
4-nerolidilcatecol ou 4-NC, pode estimular a autofagia nesse tipo de
tumor, chamado glioma, e acionar os caminhos bioquímicos que levam não
só à reciclagem, mas também à morte celular. Os gliomas se originam das
chamadas células glias, muito mais numerosas no cérebro que os
neurônios.
Massaro observou que o 4-NC também reduzia a capacidade de as
células tumorais invadirem o espaço das células sadias. Era um bom
sinal. O problema é que outros grupos de pesquisa já haviam indicado
que as células tumorais podem adquirir resistência aos estímulos que
induzem à morte celular. Uma das características típicas da célula
tumoral é justamente a capacidade de escapar da morte celular
geneticamente programada.
Como a apoptose e a autofagia se relacionam, uma estimulando ou
freando a outra, Massaro adotou a estratégia inversa: acrescentou um
composto que bloqueia a autofagia, o 3-metil-adenina ou 3-MA, à cultura
de células tumorais humanas. O 3-MA ampliou o efeito do 4-NC e a morte
dos tumores aumentou 30%, provavelmente estimulando outro mecanismo de
morte celular, em comparação com o grupo de células que receberam
apenas o 4-NC. Na Unifesp, com outros compostos, Cláudia Bincoletto
chegou a resultados semelhantes, que indicam que a autofagia não induz à
morte, mas à sobrevivência das células – portanto, quando inibida,
compostos antitumorais tornam-se mais efetivos. “Essa tem sido uma
estratégia defendida por muitos grupos em busca de novos tratamentos
contra tumores”, comenta Soraya.
“Agora nosso desafio é encontrar a dosagem que elimine apenas as
células tumorais, sem lesar as normais”, diz Silvya. Segundo ela,
alterar os níveis normais de autofagia em células saudáveis poderia
gerar desequilíbrios nos processos genéticos ou respostas inflamatórias
indesejadas. A equipe da USP havia indicado em 2008 que o 4-NC pode
estimular a apoptose de células de tumor de pele ou melanoma mantidas em
cultura de células.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a equipe de
Guido Lenz tem estudado os efeitos do resveratrol, composto natural
encontrado na casca de uva, frutas ver-melhas e amendoim, sobre a vida e
a morte das células. Sob sua orientação, Eduardo Chiela comparou os
efeitos de resveratrol e da temozolomida, um dos principais
medicamentos usados contra gliomas que, já se sabia, pode induzir à
morte por autofagia. O estudo, em fase final de redação, indicou que o
ingrediente da casca de uva (principalmente as escuras) estimula os
dois mecanismos de morte celular, a autofagia e a apoptose, em culturas
de células humanas tumorais.
Em um estudo anterior, Lauren Zamin, Guido Lenz e outros
pesquisadores da UFRGS avaliaram os efeitos do resveratrol e da
quercetina, outro componente da uva e de outras frutas: a casca de uva
contém cerca de 50 a 100 microgramas por grama de resveratrol e 40 de
quercetina; o vinho tinto, cerca de 7 a 13 de resveratrol e 7,4 de
quercetina. Uma combinação das duas substâncias fez células de glioma
de ratos entrarem em senescência, processo de envelhecimento
irreversível que pode culminar em autofagia e do qual as células
normais se valem como forma de evitar que se tornem cancerosas. Sob o
efeito dessas duas substâncias, as células tumorais se agigantaram e
depois se romperam.
Os testes prosseguem em animais e reforçam o papel duplo do
resveratrol, que, de modo inverso, apresenta um efeito
antienvelhecimento em células saudáveis. “O resveratrol parece perceber
quando uma célula é saudável ou tumoral”, observa Lenz. “Não será
fácil, mas temos muito interesse em prosseguir a pesquisa, à medida que
os resultados em ações sejam positivos, rumo a aplicações em seres
humanos.” Outros estudos já haviam descrito o resveratrol como um
composto capaz de deter outros tipos de tumores, estimular a autofagia e
deter o envelhecimento.
“A autofagia representa um enfoque promissor para tratar melanomas
(cânceres de pele)”, comentou Damià Tormo, pesquisador do Centro
Espanhol de Pesquisa sobre Câncer, em Madri, em uma apresentação em
janeiro na USP. Ele coordenou a construção de uma estrutura sintética
de RNA (ácido ribonucleico) que aciona proteínas específicas e promove
autofagia, como descrito em um artigo de 2009 na revista Cancer Cell.
Tormo trabalha também em sua empresa nascente, a BiOnco Tech, para
levar adiante o desenvolvimento dessa molécula, que se mostrou eficaz
para deter o crescimento de tumores de pele, que com frequência se
tornam resistentes a medicamentos, nos primeiros experimentos
realizados em cultura de células e em camundongos geneticamente
modificados.
Mesmo com novas substâncias com efeitos promissores e aparentemente
de baixa toxicidade, não será fácil prosseguir. Em primeiro lugar, por
causa das dificuldades para desenvolver novos medicamentos no Brasil.
Em segundo lugar, por conta do próprio papel – igualmente duplo – da
autofagia, que ajuda a sobreviver ou a eliminar tan–to as células
normais quanto as tumorais. Em vários estudos, observa Guido Kroe-mer,
pesquisador do Ins-tituto Gustaf Rouassy de Paris, mostrou-se que a
autofagia pode ter funções diferentes, de acordo com o tipo de célu-la.
Em neurônios, células do coração e ou–tros tipos de células que se
reproduzem normalmente, esse mecanismo poderia ajudar na limpeza,
eliminando resíduos, além de preparar a célula para a morte por
apoptose. Em células que se multiplicam de modo descontrolado – ou
seja, com potencial para formar tumores –, a autofagia poderia
favorecer a sobrevivência e, portanto, a eventual resistência a
compostos ou estímulos externos usados contra elas.
Reconhecida nos anos 1970 por Daniel Klionsky, pesquisador da
Universidade de Michigan, Estados Unidos, a autofagia passou quase três
décadas vista apenas como uma forma, inicialmente sem muita
importância, de a célula se livrar de si mesma. Por essa razão, foi
chamada de morte celular programada tipo 2 para diferenciar da
apoptose, ou morte tipo 1, muito mais estudada. “Pode-se dizer que a
autofagia antecede a morte celular ou que é cruzada à morte celular,
mas hoje não é mais correto afirmarmos que a autofagia seja um tipo de
morte celular”, comenta Soraya.
Os genes que controlam a autofagia começaram a ser identificados em
1997, inicialmente em leveduras, organismos unicelulares, empregados na
fabricação de pão, vinho, cerveja e álcool combustível. A partir dos
genes, os especialistas conheceram quais são e como interagem as
proteínas que levam adiante esse mecanismo flexível de reciclagem de
componentes celulares. Além de desmontar o que não está funcionando
direito, a autofagia tem outras funções ao longo do desenvolvimento das
células, nem sempre levando à morte. É necessária, por exemplo, para as
leveduras se reproduzirem e para as larvas de insetos se transformarem
em pupas.
“Hoje vemos que a autofagia está mais para sobrevivência e
resistência do que morte celular”, observa Soraya. “Diante de um
estímulo agressor ou de um defeito celular, a célula pode entrar em
autofagia como uma tentativa de reparo e só quando não há mais conserto
é que entra em processo de morte celular.” Vários estudos sugerem que
os genes e as proteínas que estimulam a autofagia podem bloquear a
apoptose, ou o contrário, a partir de estímulos muito bem definidos,
estabelecendo assim uma conversa cruzada entre esses dois fenômenos.
Quando recebem estímulos internos ou externos, as duas dezenas de
genes já identificados que controlam a autofagia acionam a produção de
proteínas, que aos poucos se encaixam formando membranas que cercam os
componentes celulares a serem desmontados antes de causarem problemas.
Em seguida, movida por outras proteínas específicas, a membrana se
funde com os lisossomos, compartimentos da célula ricos em enzimas que
rotineiramente fragmentam proteínas.
Os lisossomos digerem proteínas defeituosas celulares mais
lentamente que outro mecanismo de limpeza celular chamado proteossomo.
Embora mais lentos, os lisossomos podem eliminar estruturas celulares
maiores, quando danificadas ou deficientes, principalmente as
mitocôndrias, compartimentos celulares que convertem a energia obtida
dos alimentos em moléculas de ATP, fundamentais para a manutenção das
células. Na Unifesp, sob orientação de Soraya, Juliana Terashima
irrigou células com um composto conhecido pela sigla FCCF, extremamente
tóxico para as mitocôndrias. Em resposta, as células entraram em
autofagia, que, uma vez acionada, ajudou a remover as mitocôndrias que
haviam sido danificadas pelo composto.
Ao participar da linha de desmontagem celular, os lisossomos
permitem às células construir novas moléculas mesmo quando não são
abastecidas por matéria-prima habitual, vinda dos alimentos. A fusão
das membranas com os lisossomos leva à formação de grandes bolsas,
chamadas vacúolos autossômicos, que levam adiante a transformação de
resíduos em matéria- -prima para moléculas novas. Segundo Lenz,
aparentemente é o número de mitocôndrias eliminadas por esses vacúolos
que marca o momento em que a célula sai da fase da reciclagem para a da
destruição completa. O problema é encontrar esse limite. Ou, em termos
práticos, descobrir quantas mitocôndrias uma célula precisa perder –
uma célula possui em média 200 mitocôndrias – para entrar no caminho
irreversível da morte celular.
O conhecimento sobre essa linha de desmontagem celular, à medida que
encorpava, levantou as primeiras possibilidades, hoje mais concretas,
de intervir nessa cadeia de reações bioquímicas para prolongar a vida
das células sadias e reduzir a das tumorais. Em um estudo publicado em
fevereiro de 2008 na revista PNAS, pesquisadores italianos mostraram
que o lítio, aplicado durante 15 meses em um grupo de 44 pessoas,
poderia adiar a progressão da esclerose lateral amiotrófica, uma doença
neurodegenerativa.
Um mês antes uma equipe da Universidade de Cambridge havia mostrado na Human Molecular Genetics
as possibilidades de uso do lítio e da rapamicina, combinados, para
tratar a doen-ça de Huntington, outra enfermidade com perda contínua da
funcionalidade dos neurônios. “A autofagia parece remover os agregados
de proteínas malformadas, que atrapalham o funcionamento das células
nervosas e estão presentes em doenças neurodegenerativas como a de
Huntington, Parkinson e Alzheimer”, observa Soraya. Segundo ela, estudos
realizados em seu laboratório com células de pacientes com Huntington
mostraram que estimular a autofagia pode retardar o aparecimento da
morte celular por apoptose.
Uma célula que se limpou por meio da autofagia pode viver mais, de
acordo com um estudo realizado nos Estados Unidos e publicado na Nature
em julho de 2009. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores
cuidaram de cerca de 3 mil ratos idosos, com uma idade equivalente a 60
anos em seres humanos. Administraram rapamicina, composto que estimula a
autofagia, a uma parte dos animais e esperaram todos morrer
naturalmente, de cinco a sete meses depois. Os camundongos que receberam
rapamicina apresentaram um tempo de vida de 28% a 38% maior que os do
grupo que não recebeu nada.
Esse experimento impressionou pela grandiosidade, já que o número de
animais raramente é tão elevado, mas sua aceitação não foi consensual –
e muitos pesquisadores argumentaram que os camundongos podem ter
vivido mais por outras razões ou que esse resultado não é o bastante
para associar o controle da autofagia ao prolongamento da vida celular.
De todo modo, os mecanismos de funcionamento da autofagia tornam-se
mais claros. Outros experimentos sugeriram que a simples privação de
nutrientes pode estimular esse tipo de limpeza celular. “Recebendo
menos glicose”, comenta Soraya, “a célula vai produzir menos energia
pelas vias metabólicas habi-tuais, mas também produzirá menos resíduos
que aceleram o envelhecimento, além de estimular a autofagia, que pode
remover mitocôndrias e proteínas malformadas”.
Em um artigo publicado em 2006 na Cancer Cell, Melanie
Hippert, Patrick O’Toole e Andrew Thorburn, da Universidade de
Colorado, em Denver, Estados Unidos, reconhecem que a manipulação da
autofagia deve ser útil para deter a evolução de tumores e aumentar a
eficiência dos tratamentos contra câncer. O problema é que a autofagia
tem um papel duplo: pode inibir ou favorecer o crescimento de tumores,
dependendo das circunstâncias. Por essa razão, a autofagia poderia ser
estimulada para evitar a formação de tumores em pessoas com risco de
câncer, mas reduzida se um tumor já tiver se estabelecido no organismo.
Depois de encontrar um composto adequado, o desafio seguinte será
definir a melhor dosagem, para que apenas as células tumorais morram.
Chi Dang, da Universidade John Hopkins, Estados Unidos, relatou em
janeiro de 2008 na Journal of Clinical Investigation que a
cloroquina, um antimalárico, pode ajudar a prevenir a evolução de
tumores. Ele advertiu, porém, que o uso prolongado desse composto, que
inibe a autofagia e estimula a apoptose, pode ter efeitos colaterais
ainda não previstos, já que o conhecimento sobre o equilíbrio celular
ainda é rudimentar.
“Não acredito que os novos antitumorais apenas estimulem a
autofagia”, comenta Lenz. “Seria arriscado. A saída talvez seja algo,
como o resveratrol, que possa ter múltiplos alvos e ativar mais de um
processo bioquímico que leve à morte dos tumores, inclusive por
autofagia.” Mesmo que novos compostos não cheguem logo, a capacidade de
induzir ou bloquear a morte celular deve tornar-se uma característica
dos medicamentos em geral, ajudando a explicar como atuam no organismo –
muitos medicamentos antitumorais já em uso, por sinal, podem induzir à
autofagia. Pode ajudar também a retomar muitas pesquisas
interrompidas. “Fármacos que falharam em testes clínicos talvez
precisem ser revisitados”, cogita Silvya Stuchi Maria-Engler, da USP,
“porque podem se tornar excelentes se usados com outros, capazes de
induzir ou inibir a autofagia”.
> Artigos científicos
1. Zamin, L.L. et al. Resveratrol and quercetin cooperate to induce senescence-like growth arrest in C6 rat glioma cells. Cancer Science. v. 100, n. 9, p. 1.655-62. 2009.
2. Hippert, M.M. et al. Autophagy in cancer: good, bad, or both? Cancer Research. v. 66, n. 19, p. 9.349-51. 2006.
3. Harrison, D.E. et al. Rapamycin fed late in life extends lifespan in genetically heterogeneous mice. Nature. v. 460, p. 392-5. 2009.
4. TORMO, D. et al. Targeted activation of innate immunity for therapeutic induction of autophagy and apoptosis in melanoma cells. Cancer Cell. v. 16, n. 2, p. 103-14. 2009.
2. Hippert, M.M. et al. Autophagy in cancer: good, bad, or both? Cancer Research. v. 66, n. 19, p. 9.349-51. 2006.
3. Harrison, D.E. et al. Rapamycin fed late in life extends lifespan in genetically heterogeneous mice. Nature. v. 460, p. 392-5. 2009.
4. TORMO, D. et al. Targeted activation of innate immunity for therapeutic induction of autophagy and apoptosis in melanoma cells. Cancer Cell. v. 16, n. 2, p. 103-14. 2009.
Autor: Carlos Fioravanti
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP Online
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